PARA TODA A ETERNIDADE.

O ditado: “Aqui se faz, aqui se paga”, nem sempre corresponde exatamente, a verdade. Que se paga, paga, no entanto não precisa ser necessariamente, aqui. Algumas vezes, dívidas nos acompanharão pela eternidade. O que lhes passo a narrar tem como cenário uma casa de classe média igual a todas as outras, ou seja, com um televisor em cada quarto, forçando a família a só se encontrar e rapidamente à entrada do banheiro. No entanto, como toda regra tem exceção - a não ser as femininas - o casal após conviver na mesma paisagem doméstica durante muitos anos e, percebendo que, aquela mesmice entre ambos influía até na vontade de brigar, resolveu apelar para a razão mais conciliadora do tédio matrimonial: nova arrumação da casa.


Para variar a mulher, diz para o marido:
-Adamastor vamos mudar tudo!
-E você vai pra onde?
-Engraçadinho...
-Ah, só o mobiliário? Está bem!
-Adamastor...
-Sim, Mercia sou todo ouvido.
-Vou comprar dois quadros grandes com duas girafas enormes e colocar aqui. Coisas grandes e enormes mexem com a minha motivação e libido - diz em tom provocativo, olhando acintosamente, abaixo da linha da cintura do Adamastor que resolve ignorar a provocação.
-Mas e o crucifixo? Ele é grande, pesadão todo em bronze. É tão bonito...
-Colocamos ali ao lado da porta. Tem bastante espaço. E vou comprar também um imenso, muito legal de mogno que vi na feira de móveis lá em Petrópolis. Ela mede 2m de largura e 3m de altura...
-Pô, Mercia, não vai caber aqui na sala.
-Espera aí... Ah, já sei.Ali perto da porta onde a gente ia colocar o crucifixo...
-Vai mexer de novo com ele?
-Não tem jeito, senão o armário não cabe. Adamastor vamos colocar o crucifixo no nosso quarto.
-Ih, Mercia é meio chato.
-Chato por quê?
-A gente tá mandando ver aquele sexo esperto e de repente eu olho pra ele, pode até cortar meu barato.
-Ô Adamastor, deixa de bazófia, você só faz sexo comigo no dia do seu aniversário. Neste dia eu tiro de lá.
- Assim é melhor!
-Lá para o nosso quarto vou comprar, também um abajur de pé, em ferro torcido, todo dourado. Um não, dois...
-Mercia, pra botar onde? Do lado das mesinhas de cabeceira
-Mais aí vai prejudicar novamente o crucifixo, Mercia.
-Já sei pronto, colocamos o crucifixo na cozinha...
-Na cozinha é sacanagem...
-Por que, Adamastor?
-Ora, você gostaria de, além de estar ali há dois mil anos começar agora a levar gordura das frituras de pastel, batata frita e ovo na cara?
-Não vai não, seu apressado, eu vou colocar um exaustor em cima do fogão.
-E aquelas bugigangas que já estão lá?
-A gente coloca perto do crucifixo.
-Não Mercia. Misturar aqueles troços com o crucifixo, não.
-Já sei Adamastor, vamos colocá-lo no quarto de empregada.
-É uma idéia.
-Apesar de que, eu gostaria de colocar armário embutido naquelas paredes todas. A gente não tem empregada que durma em casa e temos muita coisa pra arrumar.
-Olha, Mercia vai ficar do cassete! Mas o crucifixo?
-Oh, coisa chata Adamastor, você e este crucifixo! Pronto vou guardá-lo, por enquanto, naquele gavetão da estante velha.
-Mercia, pendura em cima da geladeira.
-Não dá, pois vou comprar um freezer triplex. É muito alto. Esconderia ele.
-Você é quem sabe, Mercia.
Tudo combinado. Tudo resolvido. A casa será toda remodelada. Parece que afinal, a libido doméstica seria restabelecida, e o Adamastor, quem sabe,pense também em sexo, fora do dia do seu aniversário!
Mas... De repente, muito mais do que de repente, Mercia começa a sentir falta de ar, fica esverdeada, agora já está azulada. Infarto agudo do miocárdio, fulminante.
Dali pra frente o quadro costumeiro de sofrimentos e angustia da família.
O corpo de Mercia, após as exéquias de praxe, caminha agora pelas alamedas cercadas das costumeiras e grandes mangueiras, rumo ao túmulo: a chamada última morada!Pouco tempo depois já descansa em paz no claustrofóbico jazigo da família, todo em mármore preto. Muito bonito e excepcionalmente, decorado inclusive, por aquele enorme crucifixo agora, sim, colocado em destaque na lápide horizontal expandindo seus intensos reflexos dourados, e no lugar certo para a toda a eternidade. Adamastor chora copiosamente, afinal tinha encontrado a solução para um lugar digno para o crucifixo. Mas o que faria agora no dia do seu aniversário?